Acaso ou destino?
O calor era demasiado, e dentro da velha e modesta casa parecia
ainda mais insuportável. D. Maria encheu a chávena com o café recém
passado e foi sentar-se ao pé da laranjeira, única árvore que fazia
alguma sombra defronte a casa. Ali, entregue às lucubrações típicas das
pessoas que já haviam vivido muito, intercalava um mimo no cão sardento
da família com goles esparsos do café. Toda fim de
tarde a melancólica cena se repetia. A anciã, depois da sesta do
meio-dia, passava o café e ia esperar o retorno do filho, da nora e do
neto ao pé da laranjeira. Era dezembro, mês de chuvas abundantes
naquelas bandas. Todos os colonos se apressavam para semear suas
pequenas roças, pois daqui a três meses a seca voltaria com todo seu
vigor e nada mais seria capaz de sobreviver, exceto a vegetação rasteira
da caatinga.
D. Maria dissipava o olhar no horizonte, ora
pelos montes que começavam a ficar verdes devido às águas, ora pela
triste e silenciosa estrada de terra. Era antes uma pequena trilha que
uma estrada, mas para os moradores matutos da região, esta figurava-se
enorme. Já não dava mais atenção ao cão e o café já havia terminado há
algum tempo sem ela perceber. Não dormira bem à noite passada. Acordara
compungida por um pressentimento estranho, o que a deixou transtornada o
dia inteiro. Engoliu o sentimento avesso e tentou cumprir os afazeres
domésticos como de praxe, mas o pesadelo daquela última noite não a
abandonou, e era nisso em que pensava agora.
Não demorou muito e
o vulto dos três entes queridos surgiu algumas centenas de metros da
casa. O pôr-do-sol sobredimensionava o tamanho real dos franzinos
corpos, e por breves instantes eram mais gigantes da mitologia do que
humanos mortais. Zeca, o neto, vinha na frente em passo célere
sustentando a enxada encardida sob o ombro direito. Saudou a avó, pediu
sua benção; esta o concedeu meneando a cabeça para cima e para baixo. E foi
correndo aos fundos da pocilga para se lavar no poço. Estava com certa
urgência, pois era sexta-feira e Antônio, seu vizinho de uma légua,
iria passar em sua casa para irem os dois ao povoado jogar sinuca e
tomar uns goles de cachaça; única diversão na vida dura do jovem
agricultor.
Antônio não tardou a chegar. Enquanto esperava na
humilde sala Zeca enfatuar-se, dando os últimos retoques no cabelo com a
brilhantina, D. Maria que naquela hora tricotava, comentou com o filho e
a nora: - Tive um sonho muito ruim e coisa boa não foi. Algo terrível
irá acontecer. Não sei o que é, mas uma desgraça está a caminho.
Não foi a primeira vez que a família ouvia um comentário daquela
natureza. A avó tinha delírios frequentemente e todos sempre ponderavam
que era devido à senilidade natural da idade. Por fim, filho e nora
acabaram dando de ombros, mas não Antônio que ficou intrigado com a
revelação. Quis perguntar mais, porém Zeca já estava pronto chamando-o ao
lado da carroça para irem ao povoado.
Naquela noite Antônio, que
sempre foi bom jogador, errou todas as bolas e perdeu os níqueis que
havia apostado com Zeca. Voltou cabisbaixo a casa, pensando que se por
algum designo misterioso sua derrota não estaria associada ao que D.
Maria revelara anteriormente. Ao entrar na casa, a mãe estava tirando a
mesa do jantar e o interpelou: - Que tal o jogo de hoje?
Antônio
respondeu secamente que havia perdido, coisa que raramente acontecia, e
atribuiu o infortúnio às visões de D. Maria. A mãe que ficara curiosa
ensejou prontamente inteirar-se da histórica. O filho então contou que a
velha D. Maria havia pressentido uma desgraça, que ela não tardaria a
se abater sobre o povoado. A mãe conteve o riso, disse que a derrota do
filho no jogo de sinuca não tinha nenhuma providência superiora, que foi
simplesmente falta de sorte. Dito isto foi dormir.
Ao acordar
na manhã seguinte, a mãe de Antônio, enquanto fervia o leite para o
café, comentou com o marido a história que o filho havia lhe contou na
véspera. Seu João mastigou uma fatia de pão com margarina, e enquanto
colocava uma rapadura na bolsa para comer na hora do almoço disse que tudo
aquilo era bobagem, que o filho sempre se impressionou fácil com esse
tipo de superstição. João deu um beijo de soslaio na bochecha da esposa e saiu
pela porta. Montou o cavalo que já estava selado e foi à fazenda do Sr.
Francisco de Assumpção, onde trabalhava como peão sazonal nessa época do
ano.
A faina era muita, mas era aquele serviço que
sustentava a família do Seu João. A esposa fazia doces para vender na
feira dominical que acontecia sagradamente todas as semanas na praça da
igreja. O dinheiro dessa atividade não era muito, mas no fim do mês o
que sobrava era determinante para que a família pudesse pagar a outra
parte da dívida contraída junto ao Sr. Francisco de Assumpção. O fazendeiro
havia emprestado alguma soma no ano passado quando Antônio tivera
pneumonia e necessitou ir à capital para ficar internado no Hospital
Regional. Por pouco o menino não morreu, mas a semana em que ele e a
mãe passaram fora de casa fez com que todos os esparsos recursos da
família se terminassem por completo. Daí a necessidade da intervenção da
boa têmpera do grande fazendeiro. Desde então, como forma de quitar a
dívida, Seu João trabalhava alguns meses por ano zelando pelo gado,
cerca de 200 cabeças, uma verdadeira fortuna para aqueles colonos
acostumados com a sofreguidão de todos os dias.
Contudo, voltemos à
história que o caríssimo leitor já esta cansado de tanto circunlóquio.
Havíamos parado no dia exaustivo do Seu João. Além de suas obrigações
regulares, que eram muitas, ele teve que acudir a três vacas. A primeira foi picada por
uma serpente peçonhenta. Apesar dos remédios aplicados minutos depois da
picada, a vaca não resistiu e morreu espumando pela boca. A segunda vaca
havia caído barranco abaixo, quebrou duas patas e teve que ser
sacrificada. A terceira, prenha, pariu um terneirinho assaz fraco, o
qual veio a morrer em seguida sem chance de ser socorrido no estábulo da
fazenda central. Seu João voltava para casa pensando em como anunciar ao
patrão a morte de 3 animais em um mesmo dia. Depois de tantos meses
trabalhando na fazenda, foi a primeira vez que algo tão fatídico
sucedeu. Certamente o Sr. Francisco de Assumpção colocaria a culpa no
pobre peão, acusando-o de incapaz e quiçá, por que não, computando as
mortes à conta do próprio empregado. Seu João ao voltar para casa
desabou em lágrimas e olhou com ternura a mulher, cogitando que a
profecia de D. Maria já estava em curso. Narrou-lhe o ocorrido, não sem
grandes dificuldades, já que o choro misturava-se às palavras. A mulher
ficou comovida, como deveria de ser, mas argumentou que a tragédia não
era a mesma desgraça que D. Maria havia feito alusão. A desgraça não
afetaria o povoado, antes seria uma desgraça individual da família. À
noite, o sono custou-lhe a chegar e enquanto esteve acordada, a esposa
esforçou-se em não deixar-se levar pela tentação de atribuir o azar da
família às palavras da avó de Zeca.
Chegou domingo e com ele a
feira na praça da igreja. A esposa do Seu João que levantara de
madrugada para encher a carroça com doces, geléias, rapaduras, e demais
quitutes regionais - estava ansiosa para ir ao povoado e vender seus
produtos. O dinheiro estava minguando rapidamente e a família
necessitava de um extra. A praça estava lotada como de costume - nem
mesmo as pancadas irregulares ao longo do dia espantaram os
transeuntes - e o comércio ocorreu sem sobressaltos. Não para a esposa do
Seu João, que consegui vender apenas 1 kg. de rapadura e um pote de
doce de piqui, quando em dias normais teria vendido o triplo daquela
mísera quantia. Retornou a casa, descontenta e preocupada, mas não sem
antes comentar com duas comadres de culto, que a culpa da desgraça dela e
da família era a praga de D. Maria.
Bem, o leitor já deve imaginar
o que sucedeu nos próximos dias. Não irei mais roubar-lhe o precioso
tempo narrando como a história da avó do Zeca espraiou-se pelos cantos
mais recônditos do povoado. Basta dizer que os mais crédulos começaram a
perceber nos mínimos detalhes do cotidiano razões que comprovassem a
desgraça antevista pela velha D. Maria. Era um pássaro diferente, mui
raramente visto naqueles domínios, que pousou certa manhã na torre da
igreja para que os moradores já confabulassem sobre a raridade do
fenômeno. Ou era uma semana em que choveu menos que o esperado para aquela
época do ano, que os mais crentes afirmassem que o mal estava
espreitando mui próximo. Ou ainda, o mais grave, a esposa do único
médico do povoado havia morrido abruptamente, ninguém soube explicar o
porquê da morte. A gente cismática conspirava: “se a esposa do médico,
cheia dos cuidados desde sempre, faleceu sem que o marido pudesse
salvá-la, o que será das outras pessoas que não dispõem dos mesmos
recursos?”
Os dias passaram, a história ganhou proporções
extraordinárias e fantasmagóricas. O povoado estava mergulhado num caos
sem precedentes. As pessoas com medo e amofinadas evitavam qualquer
coisa nova. Nem nos piores meses de seca se viu tamanha aflição nos
rostos dos moradores. Tudo era motivo para desavença. Vizinhos que eram
amigos começaram a brigar por miudezas, as contas deixaram de ser pagas,
saques começaram a ser freqüentes, até as beatas mais fervorosas não
saiam da igreja, onde passavam o dia inteiro ajoelhadas rezando tentando
retardar o apocalipse ou pedindo pela absolvição dos pecados. O medo
havia vencido até os espíritos mais incrédulos e virtuosos e, cabo 30
dias daquela sinistra sexta-feira em que Antônio e Zeca foram jogar
sinuca, os primeiros moradores do povoado começaram a debandarem-se a
fim de escapar da iminente tragédia. Outros seguiram os mesmos passos.
Casas eram abandonadas às pressas, roupas e móveis deixados pelo
caminho, animais eram soltos no mato para que também tentassem a sorte
de escapar do nefasto e certo destino.
Por fim, o povoado estava
completamente abandonado. As portas e janelas das casas escancaradas, um
vento frio soprava zunindo entre os galhos das árvores. Era a paisagem
do mais total e desconsolador deserto. Um povoado morto, entregue à
penumbra desconhecida. A última família a abandonar sua casa foi a de D.
Maria. Quanto já ia longe, junto com o restante da família e as
pequenas malas que couberam na carroça, D. Maria olhou para trás e vê o
trágico cenário desconsolada. Uma lágrima brota-lhe da face e uma última
sentença é sussurrada: - eu não disse que algo muito ruim iria
acontecer.
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