sábado, 9 de março de 2013

Acaso ou destino?

      O calor era demasiado, e dentro da velha e modesta casa parecia ainda mais insuportável. D. Maria encheu a chávena com o café recém passado e foi sentar-se ao pé da laranjeira, única árvore que fazia alguma sombra defronte a casa. Ali, entregue às lucubrações típicas das pessoas que já haviam vivido muito, intercalava um mimo no cão sardento da família com goles esparsos do café. Toda fim de tarde a melancólica cena se repetia. A anciã, depois da sesta do meio-dia, passava o café e ia esperar o retorno do filho, da nora e do neto ao pé da laranjeira. Era dezembro, mês de chuvas abundantes naquelas bandas. Todos os colonos se apressavam para semear suas pequenas roças, pois daqui a três meses a seca voltaria com todo seu vigor e nada mais seria capaz de sobreviver, exceto a vegetação rasteira da caatinga.
      D. Maria dissipava o olhar no horizonte, ora pelos montes que começavam a ficar verdes devido às águas, ora pela triste e silenciosa estrada de terra. Era antes uma pequena trilha que uma estrada, mas para os moradores matutos da região, esta figurava-se enorme. Já não dava mais atenção ao cão e o café já havia terminado há algum tempo sem ela perceber. Não dormira bem à noite passada. Acordara compungida por um pressentimento estranho, o que a deixou transtornada o dia inteiro. Engoliu o sentimento avesso e tentou cumprir os afazeres domésticos como de praxe, mas o pesadelo daquela última noite não a abandonou, e era nisso em que pensava agora.
     Não demorou muito e o vulto dos três entes queridos surgiu algumas centenas de metros da casa. O pôr-do-sol sobredimensionava o tamanho real dos franzinos corpos, e por breves instantes eram mais gigantes da mitologia do que humanos mortais. Zeca, o neto, vinha na frente em passo célere sustentando a enxada encardida sob o ombro direito. Saudou a avó, pediu sua benção; esta o concedeu meneando a cabeça para cima e para baixo. E foi correndo aos fundos da pocilga para se lavar no poço. Estava com certa urgência, pois era sexta-feira e Antônio, seu vizinho de uma légua, iria passar em sua casa para irem os dois ao povoado jogar sinuca e tomar uns goles de cachaça; única diversão na vida dura do jovem agricultor.
      Antônio não tardou a chegar. Enquanto esperava na humilde sala Zeca enfatuar-se, dando os últimos retoques no cabelo com a brilhantina, D. Maria que naquela hora tricotava, comentou com o filho e a nora: - Tive um sonho muito ruim e coisa boa não foi. Algo terrível irá acontecer. Não sei o que é, mas uma desgraça está a caminho.
      Não foi a primeira vez que a família ouvia um comentário daquela natureza. A avó tinha delírios frequentemente e todos sempre ponderavam que era devido à senilidade natural da idade. Por fim, filho e nora acabaram dando de ombros, mas não Antônio que ficou intrigado com a revelação. Quis perguntar mais, porém Zeca já estava pronto chamando-o ao lado da carroça para irem ao povoado.
      Naquela noite Antônio, que sempre foi bom jogador, errou todas as bolas e perdeu os níqueis que havia apostado com Zeca. Voltou cabisbaixo a casa, pensando que se por algum designo misterioso sua derrota não estaria associada ao que D. Maria revelara anteriormente. Ao entrar na casa, a mãe estava tirando a mesa do jantar e o interpelou: - Que tal o jogo de hoje?
     Antônio respondeu secamente que havia perdido, coisa que raramente acontecia, e atribuiu o infortúnio às visões de D. Maria. A mãe que ficara curiosa ensejou prontamente inteirar-se da histórica. O filho então contou que a velha D. Maria havia pressentido uma desgraça, que ela não tardaria a se abater sobre o povoado. A mãe conteve o riso, disse que a derrota do filho no jogo de sinuca não tinha nenhuma providência superiora, que foi simplesmente falta de sorte. Dito isto foi dormir.
     Ao acordar na manhã seguinte, a mãe de Antônio, enquanto fervia o leite para o café, comentou com o marido a história que o filho havia lhe contou na véspera. Seu João mastigou uma fatia de pão com margarina, e enquanto colocava uma rapadura na bolsa para comer na hora do almoço disse que tudo aquilo era bobagem, que o filho sempre se impressionou fácil com esse tipo de superstição. João deu um beijo de soslaio na bochecha da esposa e saiu pela porta. Montou o cavalo que já estava selado e foi à fazenda do Sr. Francisco de Assumpção, onde trabalhava como peão sazonal nessa época do ano.
      A faina era muita, mas era aquele serviço que sustentava a família do Seu João. A esposa fazia doces para vender na feira dominical que acontecia sagradamente todas as semanas na praça da igreja. O dinheiro dessa atividade não era muito, mas no fim do mês o que sobrava era determinante para que a família pudesse pagar a outra parte da dívida contraída junto ao Sr. Francisco de Assumpção. O fazendeiro havia emprestado alguma soma no ano passado quando Antônio tivera pneumonia e necessitou ir à capital para ficar internado no Hospital Regional. Por pouco o menino não morreu, mas a semana em que ele e a mãe passaram fora de casa fez com que todos os esparsos recursos da família se terminassem por completo. Daí a necessidade da intervenção da boa têmpera do grande fazendeiro. Desde então, como forma de quitar a dívida, Seu João trabalhava alguns meses por ano zelando pelo gado, cerca de 200 cabeças, uma verdadeira fortuna para aqueles colonos acostumados com a sofreguidão de todos os dias.
     Contudo, voltemos à história que o caríssimo leitor já esta cansado de tanto circunlóquio. Havíamos parado no dia exaustivo do Seu João. Além de suas obrigações regulares, que eram muitas, ele teve que acudir a três vacas. A primeira foi picada por uma serpente peçonhenta. Apesar dos remédios aplicados minutos depois da picada, a vaca não resistiu e morreu espumando pela boca. A segunda vaca havia caído barranco abaixo, quebrou duas patas e teve que ser sacrificada. A terceira, prenha, pariu um terneirinho assaz fraco, o qual veio a morrer em seguida sem chance de ser socorrido no estábulo da fazenda central. Seu João voltava para casa pensando em como anunciar ao patrão a morte de 3 animais em um mesmo dia. Depois de tantos meses trabalhando na fazenda, foi a primeira vez que algo tão fatídico sucedeu. Certamente o Sr. Francisco de Assumpção colocaria a culpa no pobre peão, acusando-o de incapaz e quiçá, por que não, computando as mortes à conta do próprio empregado. Seu João ao voltar para casa desabou em lágrimas e olhou com ternura a mulher, cogitando que a profecia de D. Maria já estava em curso. Narrou-lhe o ocorrido, não sem grandes dificuldades, já que o choro misturava-se às palavras. A mulher ficou comovida, como deveria de ser, mas argumentou que a tragédia não era a mesma desgraça que D. Maria havia feito alusão. A desgraça não afetaria o povoado, antes seria uma desgraça individual da família. À noite, o sono custou-lhe a chegar e enquanto esteve acordada, a esposa esforçou-se em não deixar-se levar pela tentação de atribuir o azar da família às palavras da avó de Zeca.
     Chegou domingo e com ele a feira na praça da igreja. A esposa do Seu João que levantara de madrugada para encher a carroça com doces, geléias, rapaduras, e demais quitutes regionais - estava ansiosa para ir ao povoado e vender seus produtos. O dinheiro estava minguando rapidamente e a família necessitava de um extra. A praça estava lotada como de costume - nem mesmo as pancadas irregulares ao longo do dia espantaram os transeuntes - e o comércio ocorreu sem sobressaltos. Não para a esposa do Seu João, que consegui vender apenas 1 kg. de rapadura e um pote de doce de piqui, quando em dias normais teria vendido o triplo daquela mísera quantia. Retornou a casa, descontenta e preocupada, mas não sem antes comentar com duas comadres de culto, que a culpa da desgraça dela e da família era a praga de D. Maria.
      Bem, o leitor já deve imaginar o que sucedeu nos próximos dias. Não irei mais roubar-lhe o precioso tempo narrando como a história da avó do Zeca espraiou-se pelos cantos mais recônditos do povoado. Basta dizer que os mais crédulos começaram a perceber nos mínimos detalhes do cotidiano razões que comprovassem a desgraça antevista pela velha D. Maria. Era um pássaro diferente, mui raramente visto naqueles domínios, que pousou certa manhã na torre da igreja para que os moradores já confabulassem sobre a raridade do fenômeno. Ou era uma semana em que choveu menos que o esperado para aquela época do ano, que os mais crentes afirmassem que o mal estava espreitando mui próximo. Ou ainda, o mais grave, a esposa do único médico do povoado havia morrido abruptamente, ninguém soube explicar o porquê da morte. A gente cismática conspirava: “se a esposa do médico, cheia dos cuidados desde sempre, faleceu sem que o marido pudesse salvá-la, o que será das outras pessoas que não dispõem dos mesmos recursos?”
     Os dias passaram, a história ganhou proporções extraordinárias e fantasmagóricas. O povoado estava mergulhado num caos sem precedentes. As pessoas com medo e amofinadas evitavam qualquer coisa nova. Nem nos piores meses de seca se viu tamanha aflição nos rostos dos moradores. Tudo era motivo para desavença. Vizinhos que eram amigos começaram a brigar por miudezas, as contas deixaram de ser pagas, saques começaram a ser freqüentes, até as beatas mais fervorosas não saiam da igreja, onde passavam o dia inteiro ajoelhadas rezando tentando retardar o apocalipse ou pedindo pela absolvição dos pecados. O medo havia vencido até os espíritos mais incrédulos e virtuosos e, cabo 30 dias daquela sinistra sexta-feira em que Antônio e Zeca foram jogar sinuca, os primeiros moradores do povoado começaram a debandarem-se a fim de escapar da iminente tragédia. Outros seguiram os mesmos passos. Casas eram abandonadas às pressas, roupas e móveis deixados pelo caminho, animais eram soltos no mato para que também tentassem a sorte de escapar do nefasto e certo destino.
     Por fim, o povoado estava completamente abandonado. As portas e janelas das casas escancaradas, um vento frio soprava zunindo entre os galhos das árvores. Era a paisagem do mais total e desconsolador deserto. Um povoado morto, entregue à penumbra desconhecida. A última família a abandonar sua casa foi a de D. Maria. Quanto já ia longe, junto com o restante da família e as pequenas malas que couberam na carroça, D. Maria olhou para trás e vê o trágico cenário desconsolada. Uma lágrima brota-lhe da face e uma última sentença é sussurrada: - eu não disse que algo muito ruim iria acontecer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário