sexta-feira, 15 de março de 2013

Felicidade

     Embora já tivesse trinta anos, Bertha Young ainda experimentava momentos como esse, quando gostaria de correr em vez de andar, sair dançando pela calçada, brincar, atirar alguma coisa para o ar e tornar a pegá-la ou ficar imóvel e rir - à toa - simplesmente à toa.
    O que fazer se, com trinta anos, ao virar a esquina de sua própria rua, você é repentinamente tomada por um sentimento de felicidade - felicidade absoluta! - como se repentinamente tivesse engolido um pedaço brilhante daquele sol do entardecer e ele queimasse em seu peito, enviando uma chuvinha de faíscas para cada parícula, dos pés à cabeça?
     Oh, será que não existe uma maneira de expressar isso sem passar por "bêbado e descontrolado"? Como é idiota a civilização! De que serve um corpo se tenho que mantê-lo fechado numa caixa como um violino raro?
                                                                                                                                   Katherine Mansfield 

sábado, 9 de março de 2013

Acaso ou destino?

      O calor era demasiado, e dentro da velha e modesta casa parecia ainda mais insuportável. D. Maria encheu a chávena com o café recém passado e foi sentar-se ao pé da laranjeira, única árvore que fazia alguma sombra defronte a casa. Ali, entregue às lucubrações típicas das pessoas que já haviam vivido muito, intercalava um mimo no cão sardento da família com goles esparsos do café. Toda fim de tarde a melancólica cena se repetia. A anciã, depois da sesta do meio-dia, passava o café e ia esperar o retorno do filho, da nora e do neto ao pé da laranjeira. Era dezembro, mês de chuvas abundantes naquelas bandas. Todos os colonos se apressavam para semear suas pequenas roças, pois daqui a três meses a seca voltaria com todo seu vigor e nada mais seria capaz de sobreviver, exceto a vegetação rasteira da caatinga.
      D. Maria dissipava o olhar no horizonte, ora pelos montes que começavam a ficar verdes devido às águas, ora pela triste e silenciosa estrada de terra. Era antes uma pequena trilha que uma estrada, mas para os moradores matutos da região, esta figurava-se enorme. Já não dava mais atenção ao cão e o café já havia terminado há algum tempo sem ela perceber. Não dormira bem à noite passada. Acordara compungida por um pressentimento estranho, o que a deixou transtornada o dia inteiro. Engoliu o sentimento avesso e tentou cumprir os afazeres domésticos como de praxe, mas o pesadelo daquela última noite não a abandonou, e era nisso em que pensava agora.
     Não demorou muito e o vulto dos três entes queridos surgiu algumas centenas de metros da casa. O pôr-do-sol sobredimensionava o tamanho real dos franzinos corpos, e por breves instantes eram mais gigantes da mitologia do que humanos mortais. Zeca, o neto, vinha na frente em passo célere sustentando a enxada encardida sob o ombro direito. Saudou a avó, pediu sua benção; esta o concedeu meneando a cabeça para cima e para baixo. E foi correndo aos fundos da pocilga para se lavar no poço. Estava com certa urgência, pois era sexta-feira e Antônio, seu vizinho de uma légua, iria passar em sua casa para irem os dois ao povoado jogar sinuca e tomar uns goles de cachaça; única diversão na vida dura do jovem agricultor.
      Antônio não tardou a chegar. Enquanto esperava na humilde sala Zeca enfatuar-se, dando os últimos retoques no cabelo com a brilhantina, D. Maria que naquela hora tricotava, comentou com o filho e a nora: - Tive um sonho muito ruim e coisa boa não foi. Algo terrível irá acontecer. Não sei o que é, mas uma desgraça está a caminho.
      Não foi a primeira vez que a família ouvia um comentário daquela natureza. A avó tinha delírios frequentemente e todos sempre ponderavam que era devido à senilidade natural da idade. Por fim, filho e nora acabaram dando de ombros, mas não Antônio que ficou intrigado com a revelação. Quis perguntar mais, porém Zeca já estava pronto chamando-o ao lado da carroça para irem ao povoado.
      Naquela noite Antônio, que sempre foi bom jogador, errou todas as bolas e perdeu os níqueis que havia apostado com Zeca. Voltou cabisbaixo a casa, pensando que se por algum designo misterioso sua derrota não estaria associada ao que D. Maria revelara anteriormente. Ao entrar na casa, a mãe estava tirando a mesa do jantar e o interpelou: - Que tal o jogo de hoje?
     Antônio respondeu secamente que havia perdido, coisa que raramente acontecia, e atribuiu o infortúnio às visões de D. Maria. A mãe que ficara curiosa ensejou prontamente inteirar-se da histórica. O filho então contou que a velha D. Maria havia pressentido uma desgraça, que ela não tardaria a se abater sobre o povoado. A mãe conteve o riso, disse que a derrota do filho no jogo de sinuca não tinha nenhuma providência superiora, que foi simplesmente falta de sorte. Dito isto foi dormir.
     Ao acordar na manhã seguinte, a mãe de Antônio, enquanto fervia o leite para o café, comentou com o marido a história que o filho havia lhe contou na véspera. Seu João mastigou uma fatia de pão com margarina, e enquanto colocava uma rapadura na bolsa para comer na hora do almoço disse que tudo aquilo era bobagem, que o filho sempre se impressionou fácil com esse tipo de superstição. João deu um beijo de soslaio na bochecha da esposa e saiu pela porta. Montou o cavalo que já estava selado e foi à fazenda do Sr. Francisco de Assumpção, onde trabalhava como peão sazonal nessa época do ano.
      A faina era muita, mas era aquele serviço que sustentava a família do Seu João. A esposa fazia doces para vender na feira dominical que acontecia sagradamente todas as semanas na praça da igreja. O dinheiro dessa atividade não era muito, mas no fim do mês o que sobrava era determinante para que a família pudesse pagar a outra parte da dívida contraída junto ao Sr. Francisco de Assumpção. O fazendeiro havia emprestado alguma soma no ano passado quando Antônio tivera pneumonia e necessitou ir à capital para ficar internado no Hospital Regional. Por pouco o menino não morreu, mas a semana em que ele e a mãe passaram fora de casa fez com que todos os esparsos recursos da família se terminassem por completo. Daí a necessidade da intervenção da boa têmpera do grande fazendeiro. Desde então, como forma de quitar a dívida, Seu João trabalhava alguns meses por ano zelando pelo gado, cerca de 200 cabeças, uma verdadeira fortuna para aqueles colonos acostumados com a sofreguidão de todos os dias.
     Contudo, voltemos à história que o caríssimo leitor já esta cansado de tanto circunlóquio. Havíamos parado no dia exaustivo do Seu João. Além de suas obrigações regulares, que eram muitas, ele teve que acudir a três vacas. A primeira foi picada por uma serpente peçonhenta. Apesar dos remédios aplicados minutos depois da picada, a vaca não resistiu e morreu espumando pela boca. A segunda vaca havia caído barranco abaixo, quebrou duas patas e teve que ser sacrificada. A terceira, prenha, pariu um terneirinho assaz fraco, o qual veio a morrer em seguida sem chance de ser socorrido no estábulo da fazenda central. Seu João voltava para casa pensando em como anunciar ao patrão a morte de 3 animais em um mesmo dia. Depois de tantos meses trabalhando na fazenda, foi a primeira vez que algo tão fatídico sucedeu. Certamente o Sr. Francisco de Assumpção colocaria a culpa no pobre peão, acusando-o de incapaz e quiçá, por que não, computando as mortes à conta do próprio empregado. Seu João ao voltar para casa desabou em lágrimas e olhou com ternura a mulher, cogitando que a profecia de D. Maria já estava em curso. Narrou-lhe o ocorrido, não sem grandes dificuldades, já que o choro misturava-se às palavras. A mulher ficou comovida, como deveria de ser, mas argumentou que a tragédia não era a mesma desgraça que D. Maria havia feito alusão. A desgraça não afetaria o povoado, antes seria uma desgraça individual da família. À noite, o sono custou-lhe a chegar e enquanto esteve acordada, a esposa esforçou-se em não deixar-se levar pela tentação de atribuir o azar da família às palavras da avó de Zeca.
     Chegou domingo e com ele a feira na praça da igreja. A esposa do Seu João que levantara de madrugada para encher a carroça com doces, geléias, rapaduras, e demais quitutes regionais - estava ansiosa para ir ao povoado e vender seus produtos. O dinheiro estava minguando rapidamente e a família necessitava de um extra. A praça estava lotada como de costume - nem mesmo as pancadas irregulares ao longo do dia espantaram os transeuntes - e o comércio ocorreu sem sobressaltos. Não para a esposa do Seu João, que consegui vender apenas 1 kg. de rapadura e um pote de doce de piqui, quando em dias normais teria vendido o triplo daquela mísera quantia. Retornou a casa, descontenta e preocupada, mas não sem antes comentar com duas comadres de culto, que a culpa da desgraça dela e da família era a praga de D. Maria.
      Bem, o leitor já deve imaginar o que sucedeu nos próximos dias. Não irei mais roubar-lhe o precioso tempo narrando como a história da avó do Zeca espraiou-se pelos cantos mais recônditos do povoado. Basta dizer que os mais crédulos começaram a perceber nos mínimos detalhes do cotidiano razões que comprovassem a desgraça antevista pela velha D. Maria. Era um pássaro diferente, mui raramente visto naqueles domínios, que pousou certa manhã na torre da igreja para que os moradores já confabulassem sobre a raridade do fenômeno. Ou era uma semana em que choveu menos que o esperado para aquela época do ano, que os mais crentes afirmassem que o mal estava espreitando mui próximo. Ou ainda, o mais grave, a esposa do único médico do povoado havia morrido abruptamente, ninguém soube explicar o porquê da morte. A gente cismática conspirava: “se a esposa do médico, cheia dos cuidados desde sempre, faleceu sem que o marido pudesse salvá-la, o que será das outras pessoas que não dispõem dos mesmos recursos?”
     Os dias passaram, a história ganhou proporções extraordinárias e fantasmagóricas. O povoado estava mergulhado num caos sem precedentes. As pessoas com medo e amofinadas evitavam qualquer coisa nova. Nem nos piores meses de seca se viu tamanha aflição nos rostos dos moradores. Tudo era motivo para desavença. Vizinhos que eram amigos começaram a brigar por miudezas, as contas deixaram de ser pagas, saques começaram a ser freqüentes, até as beatas mais fervorosas não saiam da igreja, onde passavam o dia inteiro ajoelhadas rezando tentando retardar o apocalipse ou pedindo pela absolvição dos pecados. O medo havia vencido até os espíritos mais incrédulos e virtuosos e, cabo 30 dias daquela sinistra sexta-feira em que Antônio e Zeca foram jogar sinuca, os primeiros moradores do povoado começaram a debandarem-se a fim de escapar da iminente tragédia. Outros seguiram os mesmos passos. Casas eram abandonadas às pressas, roupas e móveis deixados pelo caminho, animais eram soltos no mato para que também tentassem a sorte de escapar do nefasto e certo destino.
     Por fim, o povoado estava completamente abandonado. As portas e janelas das casas escancaradas, um vento frio soprava zunindo entre os galhos das árvores. Era a paisagem do mais total e desconsolador deserto. Um povoado morto, entregue à penumbra desconhecida. A última família a abandonar sua casa foi a de D. Maria. Quanto já ia longe, junto com o restante da família e as pequenas malas que couberam na carroça, D. Maria olhou para trás e vê o trágico cenário desconsolada. Uma lágrima brota-lhe da face e uma última sentença é sussurrada: - eu não disse que algo muito ruim iria acontecer.